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quarta-feira, 1 de dezembro de 2021

ABÍLIO LAVRADOR, latoeiro da minha infância , por Carlos Amilcar Dias

 ABÍLIO LAVRADOR, latoeiro da minha infância

Naqueles tempos idos havia vários latoeiros em Proença, na Várzea e sobretudo na Sertã. Só na rua do Vale eram dois. Normalmente tinham estabelecimento e alguns apareciam nas feiras com as suas obras. Havia alguns mais especializados em artefactos de cobre como os que construíam alambiques. 

Mas o latoeiro da minha infância não era da vila e não era especializado. Mas era um grande mestre na sua arte. Vivia na Maljoga de lá, a dita Maljoga de Proença. 

Abílio Lavrador, que de lavrador propriamente dito pouco ou nada teria, nasceu para os lados da Pampilhosa. Casou com Maria da Conceição Moreira (1921-2011), mais conhecida por ti Conceição Latoeira, e tiveram 13 filhos, sendo que 3 deles morreram de tenra idade.

Em plena 2ª guerra mundial, (1939-1945) e por mais uns quinze anos, os tempos foram muito difíceis para toda a população. Mas quem mais sofreu foram os mais pobres. Foi neste contexto que nasceram os filhos de ti Abílio e ti Conceição. 

No início deslocavam-se de terra em terra pelas redondezas de Ferreira do Zêzere, Pampilhosa e Arganil, para poder exercer a sua arte. Foi por estas terras que os mais velhos nasceram. Quando se deslocavam e já não cabiam todos na carroça, os filhos mais velhos iam a pé. 

Finalmente, já o século XX passava de metade, encontrou na Maljoga de Proença o sítio certo para viver com a família. Haveria com certeza bons motivos para se fixar nesta terra. As pessoas devem ter gostado daquela família numerosa. Com certeza que o casal foi visto como boas pessoas e os seus filhos eram, e sempre foram, considerados como bem-educados. 

A família Lavrador era muito apreciada e distinguia-se por várias qualidades que me retraio em referir, por evidentes. Mas vou contar uma cena que se passou com um dos seus filhos, que encontrou na rua um carro de linhas de costura. Pegou nele e chegou a casa todo contente com o achado. E que bem útil seria! Ti Abílio mandou imediatamente ir colocar o carro de linhas no sítio exacto em que o tinha encontrado. Espantado com o tom da ordem ainda teve a sorte de não ter sido fisicamente castigado, como era costume da época.                                                     

Passar por uma árvore e colher uma peça de fruta para comer era hábito comum nos meus tempos de infância, sem que ninguém achasse sequer inconveniente. Mas ti Abílio dizia aos filhos que mesmo a fruta que estivesse no chão não podia ser apanhada sem autorização do dono.                                                                         A comunidade percebe com facilidade esta questão da honestidade a toda a prova, o que me parece ter sido decisivo para os maljoguenses acolherem uma família nómada. E eles foram sempre generosos com os Lavrador. Desde os alimentos da horta, ao milho, aos produtos da salgadeira, da talha, ao feno para a mula. Todas as semanas havia pequenas ofertas de bens essenciais. 

Quanto à lenha para a lareira era só falar com os vizinhos e trazer das suas propriedades uns graviços das podas das oliveiras ou as pernadas que os madeireiros não levavam. Para o inverno os mais velhos iam arrancar torgas. E na época do azeite os filhos iam pedir aos lagares. Era muitas vezes o lagareiro, como o Celestino do Cabeço de Moinho, que convidava os que tinham o azeite na tarefa para oferecerem azeite aos filhos do ti Abílio Latoeiro. E de decilitro em decilitro lá conseguiam regressar a casa com a missão cumprida. 

Os mais velhos, incluindo as meninas, não tiveram a oportunidade sequer de ir à escola. Foram servir, como se dizia. Alguns/algumas a partir dos 8 anos! E servir significava fazer os trabalhos mais duros de uma casa de lavradores, muitas vezes ser o último a deitar e o primeiro a levantar, 7 dias por semana, a troco de quase nada. Não culpemos os pais. Vivia-se com muita dificuldade, houve quem passasse fome, frio e carências de toda a ordem.

Por um lado a Maljoga recebeu a família Lavrador. Por outro, vários filhos de ti Lavrador foram servir principalmente para três patrões da Isna e dois da Aldeia Ruiva. Quanto eles pagavam? Aos 8 anos provavelmente nada, além da alimentação e roupa indispensável. O Jaime, por exemplo, aos 12 anos tinha o salário anual de 500$00 (2,5€), roupa indispensável e umas botas de sola com cardas ou brochas e um fato. Aos 15 anos o patrão Catarino ofereceu um salário anual de 2500$ (12,5€), embora sem incluir roupa e calçado. Convirá também lembrar que o salário dos filhos solteiros era na totalidade receita da casa paterna. Eram costumes ancestrais.

Alguns fregueses iam a sua casa entregar os artigos que precisavam de ser reparados e ti Conceição depois ia levá-los a casa dos clientes e recebia o dinheiro. Sim! Porque mestre que se preze não recebe adiantado. E era habitual regressar a casa com diversos bens alimentares com que também os seus fregueses a presenteavam. Era uma maneira de exercer a solidariedade para com uma família que não tinha nessa altura animais ou simples quintal.

Ti Abílio tinha mãos ágeis a dobrar a folha-de-flandres, ou mesmo o latão, e fazia um sem número de utilidades necessárias à comunidade que servia. Candeias, lanternas de cágado, potes de azeite, panelas, almotolias, funis, lampiões, acinchos para a feitura do queijo, assadores de castanhas, baldes, cântaros, aguadouros, etc. Um dos trabalhos que executava era fazer embalagens para enviar para as Áfricas ou Brasil azeite, enchidos, queijos e até presunto. A operação tinha dois tempos. A folha–de-flandres tinha que ser mais grossa e a tampa seria colocada mais tarde. O cliente levava, higienizava e colocava os produtos dentro. De seguida voltava ao mestre Abílio para finalmente soldar a tampa. E não consta que alguma tivesse chegado ao destino com rotura. Eram obra de mestre.

Era habitualmente aceite que um homem também tem (tinha direito a) vícios. E os principais vícios dos homens da sua geração eram algum alcoolismo e o tabaco. E aqui o tabaco levava a melhor. Mas neste caso fumar tinha o seu ritual. Não comprava pessoalmente o tabaco. Mandava um dos filhos à taberna do Benigno comprar uma onça de tabaco, cerca de 30 gramas. E ti Abílio não fumava um atrás de outro. E se era perfeito no trabalho que fazia, igualmente perfeito era no ritual de fumar. Há que abrir o pacote, rapar com o indicador a quantidade certa, abrir o livrinho de mortalhas tira-e-fica e sacar uma para nela enrolar o tabaco. Começava a enrolar, lambia a fímbria da mortalha, retoque final com a língua nas pontas e está pronto. Então puxava uma brasa, acendia o cigarro e acalmava o vício. Tudo isto no seu ritmo calmo para apreciar o seu cigarrinho. Que isto de fumar não é esfumaçar!                                                                                  

 Como o dinheiro era pouco e o vício de fumar era maior que ele, na época de verão chegava a fumar barbas de milho. Faço aqui um parêntesis para recordar que os camisos, que são os folhelhos que envolvem as espigas de milho, eram usados para renovar os colchões a cada verão, tal como a palha de centeio antes de ser malhada. Isto para lembrar que ti Abílio mandava os filhos aproveitar os folhelhos mais finos para substituírem o livro de mortalhas. Motivo? Estou convencido que fazia parte da gestão do orçamento familiar. É que uma dúzia de bocas à mesa é muita gente.

O ti Abílio passava de vez em quando pela Isna. Chegava na sua carroça puxada por uma mula avermelhada, que havia comprado ao Maia de Cernache. Aliás este comerciante de muares era até conhecido por Maia dos burros. E, já agora, um negociante de animais de carga até aos meados do século passado tinha a profissão oficial de alguilar.                                                           

Nós os miúdos, sempre na rua, dávamos fé de todos os que chegavam, especialmente se vinham da Maljoga. Estando no Santo víamos os automóveis e carroças quando estes chegavam às alminhas. Pelo andamento da carroça sabíamos se era o ti Zé Pardal com seu burrito, que provavelmente se recusaria a puxar a carroça ao subir do ribeiro para a Isna, se a carga fosse maior, ou se era o ti Abílio latoeiro na carroça puxada pela sua mula ruça.         

Deixemos ti Abílio com a carroça a vir do Vale Pariço para cá em passo ritmado “andante ma non tropo” e falemos de impostos sobre carros e carroças. Pelo menos desde o primeiro Código da Estrada em 1928 que os veículos de tracção animal estavam sujeitos a registo na câmara municipal, sendo emitido um livrete de circulação e uma chapa, habitualmente em esmalte, com o respectivo número a afixar no veículo. Em 1958 o custo deste acto era 10$00 (0,05€). E cada veículo tinha uma segunda chapa, frequentemente em alumínio, com o nome e morada do proprietário. E se o uso do veículo permitisse isenção do imposto anual, então haveria uma terceira chapa com a indicação ISENTO, a renovar anualmente com um custo de 2$50(0,0125€).

Provavelmente quando ti Abílio chegasse à Isna já as nossas mães e irmãs mais velhas sabiam e até nos entregavam algum objecto para reparação. Podia ser o caçoilo de fazer as papas, o alguidar de comer as couves ou a salada de almeirão, ou algum prato partido, eventualmente já esmocado pelos anos de uso quotidiano, mas que ainda era recuperável com uns gatos aplicados a preceito. A carroça ficava às vezes entre a casa do Zé do Balado e a do ti António Matias (qualquer dia ainda falaremos dele), talvez junto à moreira de esterco e do tanque. Mal chegado desatrelava a mula e habitualmente alguém lhe trazia uma gavela de feno para o animal comer. Fazia parte dos costumes da Isna para ti Abílio. Também podia acampar na que nós chamávamos “casa da Carola”, onde hoje é o quintal do Assis do Sipote. Carol era o diminutivo que o grande pintor Luís Dourdil (1914-1989) usava para tratar a sua esposa D.Carolina Pedro, que tinha nascido naquela casa. 

A primeira coisa a fazer era acender uma fogueirita para aquecer o ferro de soldar. Aquilo mais parecia um martelo desorelhado. Espetava uma pequena bigorna no chão e sentado num banquito, colocava a ferramenta a jeito. Martelinhos, alicates, turquês, caixa de arrebites, ferro de soldar e respectiva solda, arame, rolo de folha-de-flandres, tesoura e outros apetrechos cujos nomes ignoro. Para anunciar a sua chegada não usava corneta, como o carteiro, nem flauta dita de pan, que nós chamávamos gaita, como o amola tesouras ou o Barateiro. Mas os primeiros a chegar éramos nós os cachopos. Às vezes éramos nós que procurávamos uns graviços ou íamos a casa buscar umas brasas, sobretudo se fosse inverno. E se a ti Madalena tivesse o forno aceso, ela que tinha fama de cozer o pantrigo, leia-se pão de trigo, mais saboroso da aldeia, então era de lá que vinham as brasas. Estava mesmo à mão.                                                        Não saíamos de ao pé dele para ver o artista a trabalhar. Mas não só. É que das suas mãos saíam uns regalos, só para nós. De pequenas tiras de lata fazia uns apitos estridentes, que para funcionar tínhamos de tapar os orifícios laterais, com os quais nós moíamos a cabeça aos mais velhos.                                        Quanto custava cada apito? Nada! Nem pedir! Bastava estar ali a olhar o trabalho do mestre a bater suavemente a lata para lhe dar o jeito. Ele olhava para um de nós, lia nos nossos olhos, puxava de uma tirita de lata, dava-lhe a forma necessária, e enquanto o diabo esfrega um olho, lá vai mais um apito. O contemplado nem se lembrava de agradecer. Arrancava a toda a velocidade, apitando até os pulmões aguentarem. E ti Abílio provavelmente ficava intimamente a curtir a alegria que aquele mimo nos proporcionava!

Ti Abílio tinha sempre bastante que fazer. Tanto remendava a almotolia do azeite como aplicava gatos no alguidar grande que se usava nas matanças e para as filhós. Os gatos eram uma espécie de agrafes que ele próprio fazia espalmando o arame grosso, cuja proveniência não era, de certeza, dos esticadores dos postes de telefone. Consertava também as panelas ou a caldeira dos porcos, deitava um fundo novo no tacho das papas, rebitava o cabo da sertage (frigideira) e soldava o cágado da lanterna, que em muitos casos ainda era de azeite. Também transformava as latas de óleo dos motores em utensílios domésticos. Nas de litro retirava uma das tampas e soldava uma asa, que servia para tirar os cereais da arca ou a farinha da dorna. Nas de 4 litros punha um bico. Serviam para levar o petróleo para os motores de rega. 

Normalmente eram as mulheres que traziam os utensílios para reparar. Mais tarde passavam para levar de volta os utensílios e efectuar o pagamento. Quando as nossas mães vinham com uma mão escondida debaixo do avental já sabíamos que o ti Abílio estava com sorte. Além do pagamento, normalmente uns tostões sacados de entre os nós na ponta dum lenço, as nossas mães levavam-lhe uma farinheira, uma tirita de carne gorda de porco ou um queijito de cabra. Se fosse tempo de matanças talvez ti Abílio chegasse a casa com duas ou três morcelas frescas, cada uma de seu fumeiro.                                                                                       Já de retorno a casa, e entre dois dedos de conversa entre vizinhas, era ouvi-las umas para as outras em conversas tipo: -Eu também gosto de lhe dar qualquer coisa que ele também tem um rebanho de filhos para criar.                                    

Solidariedade era palavra que as nossas remediadas ou pobres mães talvez não conhecessem, mas a sua prática era vivida desta maravilhosa forma. 

Passados tantos anos, ainda estou a ouvir o ti Abílio a bater com o martelinho para dar a forma à folha-de-flandres.

Completamente oposto aos homens da sua geração, não só era um bom cozinheiro como gostava de fazer comida. Se ele estava em casa era ele que cozinhava. Os seus filhos nunca esqueceram o sabor da sopa de vagens trôc/trôc. É claro que à ti Conceição não faltava que fazer para manter em ordem uma casa com 12 pessoas, além de levar aos fregueses os artefactos já reparados. Era ela que cozia o pão no forno comunitário da aldeia e tinha fama de ser perita a fazer broa.

 Outra característica dele era preocupar-se com a higiene da sua família. Tanto mandava lavar a cara aos filhos mais descuidados, como poderia mandar lavar o avental de alguma filha mais descuidada.                                                                               

Devido à sua doença estava sempre a puxar pelo seu lenço, branco com umas riscas azúis, e quando já só trabalhava em casa ele próprio lavava o seu lenço e punha a secar junto ao lume. Seria único? 

Mas um homem também tem medos. E o ti Abílio tinha muito medo/respeito à trovoada. E havia um ritual que começava no domingo anterior à Páscoa, domingo de ramos, quando as filhas recolhiam uma quantidade apreciável de ramos de alecrim, louro e de oliveira para serem benzidos na missa, como é tradição católica. Aquilo não era propriamente um ramo. Era mais um braçado. E sempre que trovejava ele mandava colocar no lume uma pequena porção. E aquele aroma suave e tranquilizante invadia toda a casa. Ainda se lembram desta cena, seus filhos do grande Lavrador?

Mesmo doente trabalhou sempre. No dia da sua morte a ti Delfina do Balado foi à Maljoga para soldar o espalhador do regador. Logo que entrou na povoação foi avisada que ti Abílio tinha acabado de falecer. Pois então, disse ela, vou mesmo a casa dele para rezar um padre-nosso pela sua alma, que ele merece. Imagem que perdura na cabeça de quem a presenciou.

Ti Abílio era um homem de muita gratidão. Agradecia sempre com uma expressão que lhe era muito particular, e que ainda hoje ecoa na minha cabeça:                                                                                                  -“Obrigadinho, senhora Maria, obrigadinho!”

Ainda hoje podemos ouvir o seu filho Jaime dizer habitualmente “obrigadinho”.

E já agora, ti Abílio, “obrigadinho” por aqueles fantásticos apitos.

Permanece em mim uma dúvida. Há 60 anos que não me voltei a encontrar com ti Abílio, que faleceu há 45 anos. Então qual o motivo que me impulsionou a escrever este texto sobre um homem simples e de poucas falas? Não tenho propriamente resposta. Mas sei que há pessoas que só nos morrem quando nos esquecermos delas.

Ti Abílio Lavrador (1917-1976), ti Abílio Latoeiro ou ti Abílio da Maljoga, como também era conhecido, é o meu mestre latoeiro. 


Uma última nota para referir que a humilde profissão de latoeiro mereceu do nosso grande poeta, Fernando Pessoa (1888-1935), o seguinte poema com o título "Ó rapaz que deita gatos":


Ó rapaz que deita gatos,                                                            

Deitas gatos só em pratos,  

Só em tachos e tigelas,

Ou deitas gatos também                                                                

Nas almas e no que há nelas                                                         

Que as quebra em mal e em bem?


Ah, se, por qualquer magia,                                   

As tuas artes subissem                                                             

 Àquela melhor mestria                                                                     

De pôr gatos que se vissem                                                        

Nesta alma que se quebrou                                                            

No que sonho e no que sou!


Então... Qual então! Que tratos                                                       

Dei a um poema que surgiu!                                                            

Só consertas, só pões gatos                                                            

No inteiro que se partiu.                                                                    

O que partido nasceu                                                                     

Nem tu consertas nem eu.

sexta-feira, 15 de outubro de 2021

O TI CHICO BARBEIRO, por Carlos Amílcar Dias (publicado no Facebook da Associação da Isna de S. Carlos)

 Mestre Xico Barbeiro

Antes de começar, aqui vai uma nota prévia, por importante. Este texto é baseado numa amena cavaqueira que mantive, num verão quente em 1991, com um dos melhores conversadores que conheci. Xico Barbeiro da Maljoga (de lá).
Barbeiro é o que tem o ofício de barbear. Era assim no princípio. Mais tarde também cortava cabelos e outros misteres de que à frente se falará.
Na nossa terra a grande maioria dos homens do início do século XX só usava os serviços de barbeiro para cortar a barba. Os que tinham dinheiro por estatuto e os simples aldeões pelo facto de as suas calejadas mãos não se ajustarem a manejar com segurança uma navalha de barba e as giletes só se começaram a vulgarizar já o século XX ia adiantado.
O primeiro homem que Xico Barbeiro conheceu e que já cortava a própria barba era o importante António Tavares. Tão importante que era conhecido apenas pela respectiva profissão. Era o simplesmente importante, e não o era pouco, “professor das Cimadas”.
Os barbeiros de Proença, e também os da Sertã, e só na rua do Vale eram 6, sempre se queixavam dos barbeiros de aldeia por lhes estragarem o negócio. Na realidade, não tinham estabelecimento, não pagavam imposto industrial e trabalhavam aos sábados e domingos, além de praticarem preços mais baixos. Pudera!
Mas falemos de barbeiros e do ti Xico Barbeiro da Maljoga. Terminada a escola, 4ª classe, por volta de 1932, iniciou-se logo na arte com o seu pai e nela trabalhou mais de 60 anos.
Todas as semanas fazia a ronda pelos clientes. Malinha com a ferramenta essencial, o serviço começava na quinta-feira pelos Pisões, Rafael, Longra e Vergão. À sexta-feira ia pela Isna, Aldeia Ruiva, Cabeço e Carvalhal. No sábado fazia as Maljogas e aos domingos as Cimadas. Meio de transporte? Sempre o vi a pé.
Durante muitos anos, pelo menos até por volta dos anos de 1950, o serviço de corte de barba era pago em géneros. Habitualmente 1/2 alqueire de milho por cara, cerca de 50 barbas por ano. Já os cortes de cabelo eram pagos à parte, a 1$50, o que, daria para comprar 2 litros de vinho. A comparação é dele próprio. Na vila cada corte já custava 2$00 ou 2$50. Lembro que nos anos 1990 o salário mínimo era cerca de 175€ e um corte de cabelo custava 100$00 (0,5€).
Qualquer local servia para desempenhar a função. Xico Barbeiro passava pelas aldeias, onde atendia a clientela na rua, ou nos pátios. Qualquer degrau de escada ou muro baixo servia de cadeira para o cliente se sentar.
Às vezes recebia recado para desviar a rota e passar em determinada propriedade, pois o seu cliente estava por lá. Chegado ao local era só procurar uma sombra e um sítio jeitoso para sentar e lá vão mais dois cabelos e uma barba.
No meu tempo de miúdo não me lembro de o ver no corte de barbas. Era só cabelos. Mas a navalha, que era sempre utilizada para o retoque final das patilhas, era levemente afiada antes de cada serviço. O movimento corporal, enquanto afiava a navalha, era objecto de divertida imitação por parte dos cachopos nas suas brincadeiras.
Era bem tratado. Um copo se a adega estava perto, às vezes acompanhado de uma lasca de presunto, sobretudo se a casa era abastada. E um mestre é sempre um mestre, e como tal deve ser tratado.
Outras vezes era um bocadelho de carne gorda, daquela bem branca, a servir de lastro a um copo. Ele chamava-lhe “burel de Janeiro”.
E não confundir esta carne branca dos porcos que ao tempo se criavam na Isna, com a carne alentejana que os Mata dos Envendos trocavam por presuntos, no início quilo por quilo. Essa sim era considerada mais saborosa.
Se fosse tempo da azeitona ou das malhas calharia a vez às filhós.
Nunca levava farnel. Em tempo de fruta era uma fartura por aqueles caminhos. E o jantar, ao meio dia, era sempre em casa de determinados clientes com quem se sentava à mesa. Não fazia parte do contrato, apenas gentileza daqueles fregueses. Tinha razão para se sentir estimado, como me disse.
Mas Xico Barbeiro era especialmente um homem sempre bem-disposto. Conversador nato, era também um inesgotável contador de histórias. Como bom comunicador, falava sempre baixo. E até as prolongadas gargalhadas pareciam sob controlo, quando de uma anedota bem contada. E ele sabia bem contá-las e todas as semanas trazia novas.
Dotado de uma empatia muito grande, não parava de conversar enquanto manejava a tesoura ou a máquina, manual claro, de cortar o cabelo.
Era um autêntico cronista. E quando ouço na rádio TSF as crónicas do Fernando Alves, seu sobrinho, digo para os meus botões que tem a quem sair.
Contava quem tinha nascido, morrido, casado, chegado das Áfricas ou do Brasil. Tudo o que era novidade nas aldeias que visitava era motivo de conversa. E esta só se acabava quando terminava o serviço em mãos.
Dizia-me que se admirava de homens ricos, de terras penso eu, que colocavam o pescoço perante a navalha de um pobretana como ele.
Falou-me nos barbeiros sangradores do Pereiro e do Amioso. E também do mais famoso, que era o barbeiro das Relvas, conhecido numa área que abrangia vários concelhos. Nesse tempo, e em muitas circunstâncias, este barbeiro substituía o médico e o veterinário.
Um dia, numa feira de bois em Proença, vi uma mulher a mostrar-lhe as gretas nos calcanhares. A receita foi rápida e gratuita: - Ó mulher! Aplique unto! (carne gorda de porco sem sal). E até a Natalina pode ainda lembrar-se como foi tratada pelo barbeiro das Relvas. Natalina vê um homem apear-se do seu cavalo, vai com ela e com a mãe para a varanda da casa velha, abre a maleta, saca da navalha de barba, lancetou o furúnculo e… já está! Ena, ti Júlia! Isto é obra! Ela que conte os pormenores!
Também porco doente era tratado por barbeiros desta época por mezinhas caseiras ou até através de sangria, rasgando a orelha. Os remédios para as pessoas, medicamento é palavra recente, eram muitas vezes chás para males de barriga e papas de linhaça para inchaços. Até a extracção de dentes chegou a fazer parte do ofício daqueles barbeiros.
Aliás, a profissão de sangrador era reconhecida em Portugal desde 1604, data da publicação de um livro com o título “Prática de Barbeiros”. Desde essa data que há referências históricas às chamadas Artes de Sangradores. Em 1620 havia mesmo num hospital de Lisboa uma escola de sangria.
Por agora vou deixar-me de barbeirices. O importante é a singela homenagem que quis prestar a um mestre dos meus tempos de menino. Ti Xico Barbeiro, aliás Francisco Alves (1920-2002), é o meu mestre eleito nesta arte.