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domingo, 31 de março de 2024

HORRÍVEL TRAGÉDIA NA VÁRZEA DOS CAVALEIROS [1] ASSASSINATO DE JOÃO ANTÓNIO NO DIA 5 DE FEVEREIRO DE 1913

 

1.ª PARTE


Adeus aldeia da Várzea

Qual foram os teus destinos

De hoje para o futuro

És terra de assassinos.


2


Com a dor no coração

Escrevi neste papel

Até hoje nunca se viu

Barbaridade tão cruel.


3


Foi no dia cinco de Fevereiro

Que este caso aconteceu

Pelas quatro horas da manhã

João António faleceu.


4


Foram quatro vadios

Consciências desvairadas

Tirá-lo da sua cama

Para lhe dar sete facadas.


5


Os bárbaros sem consciência

Sem temor e sem contrição

Deram-lhe uma no lado direito

Que lhe atravessou o coração.




6


Foram chamar seu irmão

Que tal coisa não sabia

Quando ao pé dele chegou

Desmaiado no chão caiu.


7


Quando o povo se ajuntou

Causava dó e compaixão

Gritavam em altas vozes

Sejam encerrados na prisão.


8


Foram chamar o regedor

Os cabos também vieram

Ficaram todos atónitos

Por fim nada fizeram.


9


O regedor não teve esperteza

Isto se pode destinguir

Andaram ali acassapados

Depois deixaram-nos fugir.


10


Veio a justiça da Sertã

Causava terror e confusão

Quando encontraram o cadáver

De bruços no meio do chão.



11


Instou o senhor doutor médico

Não foi escasso em dizer

Abram caminho para o lado

Cheguem todos e venham ver.


12


Ó pais e mães de família

Vinde todos observar

Esta cena tão horrorosa

Nela exemplo tomar


13


Não se viam se não lágrimas

Lamentações e suspiros

Choravam em altas vozes

Amigos parentes e vizinhos


14


O seu irmão José Nunes

Com o coração cheio de mágoa

Apanhou o sangue todo

Com os olhos banhados em água.


15


Foi levá-lo ao cemitério Santo

Onde jazem corpos mortais

Repouso de profunda tristeza

De nossos avós e pais.



16


Levaram o cadáver para a Sertã

Para terra de mais respeito

Só no dia seis à tarde

Foi a autópsia feita.


17


Deviam tirar-lhes o coração

Para nele tomar experiência

Para depois o apresentarem

No dia da audiência.


18


Tomem nota meus senhores

Por cima da pedra dura

Dois já estão na prisão

João António na sepultura.



SEGUNDA PARTE


NOMEAÇÃO DOS ASSASSINOS


19


Eis aqui meus senhores

Uma história de pasmar

Tem o coração muito duro

Quem não se largar a chorar.


20


Carlos Brízio traiçoeiro

Que sua faca afiou

Que havia de dar sete facadas

Por certo assim calhou.


21


Foi Adelino Morgado

Com a sua má contrição

Pegou logo na faca

Cravou-a no coração.


22


Segundou-a sete vezes

Causa dó e muito respeito

Por ser bárbaro e carrasco

Com uma mão ficou satisfeito.


23


O seu irmão João Morgado

Era da mesma secção

O povo encontrou este delito

E não lhe deitaram a mão.


24


Também o Manuel Martins

Por ser filho de homem honrado

Deitamo-lo para aquele poço

Aperda [2] que o leve o diabo.



25


Vejam aqui uma expressão

De homem de tanto valor

Só ele tinha presunção

De ser mordomo do Senhor.


26


Eram quatro desordeiros

De noite faziam chinfrim

Assim mataram aquele rapaz

Sem o povo dar motim.


27


Quando estava em agonia

De profundo deu um ai

Deixem-me, vou pagar o vinho

Ai Jesus... ó meu pai!


28


Ouviu José Francisco

Ele os quis repreender

Saltaram enraivecidos

O telhado lhe foram moer.


29


Bateram à parta da Carraça

Naquele mesmo momento

Ó Maria abre-nos a porta,

Demora-nos pouco tempo.



30


Ela estava na cama

Tratou de se vestir

Desceu a escada abaixo

Para a porta lhes abrir.


31


Entraram para dentro

Alegres do coração

Aquele já está seguro

Falta-nos agora o seu irmão.


32


Talvez o alma de tantos

Ainda queira escapar

Vou-lhe dar outra facada

Que ele por força há-de ficar.


33


Ó corações enraivecidos

Depois de o rapaz estar morto

Pegam outra vez na faca

Vão-lha espetar no corpo.


34


Vós ficastes regalados

De cortar em carne humana

O diabo vou tentou

Que a muitos engana



35


Prometestes-lhe um vestido

Para ela vos não declarar

Mas há-de ser a melhor testemunha

Que vos há-de acusar.


36


Prometestes-lhe muitas prendas

Isso não presta para nada

Se ela não confessar a verdade

Merece ser degradada.


37


Seguistes a lei da natureza

Ao vício e à vaidade

Para regalar o coração

Perderam a liberdade.


38


Por aquilo já se esperava

Na aldeia não havia paz

No João António ninguém falava

Porque era muito bom rapaz.


39


Depois de se pôr o Sol

Ninguém lá podia passar

Fosse quem quer que fosse

Davam-lhe logo a rachar.



40


Também ao Manuel Isidro

Quiseram tirar a buchada

Valeram-lhe as sapatilhas

Ainda apanhou uma pancada.


41


Faziam rondas de noite

Ninguém deixavam sossegar

Já não faziam caso deles

Era gritar sobre gritar.


42


Tomem nota meus senhores

Notem e queiram notar

Estes devem ficar livres

De o Sol os queimar [3].



TERCEIRA PARTE


LAMENTAÇÃO DOS PRISIONEIROS


43


Vê aqui ó Manuel Martins

Também os teus companheiros

Podiam ser bons cidadãos

E por fim são prisioneiros.




44


Vedes aqui o que causou

A vossa má inclinação

Agora por fim o que vos resta

É viver na solidão.


45


Sirva a todos de exemplo

Que não deve ficar cobiça

Devemos ter dó deles

Mas deve cumprir-se a justiça.

46


Ex.mo Juiz de Direito

Ouvi-me esta palavra:

Fazei justiça recta

Um homem não é uma cabra.


47


Se não houver algum temor

E da Justiça algum respeito

Se não tivermos disciplina

Matar-se-á tudo a eito.


48


Não quiseram contradizer

Suas paixões desvairadas

Homens sem freio nas acções

São como feras desesperadas.



49


A vossa gente anda de luto

Sofrer sobre sofrer

Antes de fazer tal delito

Mais vos valia morrer.


50


Pelo menos sentia-se a perda

De homens de pouco valor

Assim sempre ficam sendo

Da geração dos matadores.


51


Vós tendes muitos bens

Não os soubestes lograr

Para serem homens modelo

Não vos quisestes incomodar.


52


O que muito incomoda

Para quem é ilustrado

Fazer serviços e más acções

Para viver envergonhado.


53


No seio do lar doméstico

Vos podíeis cultivar

Pretender uma donzela

Para vosso filho educar.



54


Para este bem tão comum

São palavras evidentes

Assassinos e matadores

Não devem ter descendentes.


55


Perdeste o direito

Aos negócios sociais

Não estareis envergonhados

De desonrar vossos pais?


56


Quando ias ao adro

Apertar a mão às donzelas

Beber o vinho com os amigos

Ai Jesus... Cousas tão belas.


57


Perdestes o direito ao recreio

Da Primavera das flores

Ouvir cantar os passarinhos

Trinando hinos e louvores.


58


Ó, que recreios tão lindos

Se ama e louva ao Senhor

No vosso coração já não entrava

Nenhum raio do seu amor.



59


Pelo silêncio da noite

O Céu semeado de estrelinhas

Quando vós andáveis na rua

Fazendo asneirinhas.


60


Perdestes o direito ao Sol

Que ilumina todo o mundo

Agora por fim é jazer

Nesse abismo tão profundo.


61


Quem pudera escrever

Bem a fundo a vossa vida

Faltou-me a capacidade

E os estudos de Coimbra.


62


Sou do concelho de Proença-a-Nova

Na Maljoga residente

Sou um infeliz

Com pouco entendimento.


63


Queiram-me todos desculpar

A minha incapacidade

O meu nome é José da mata

Não vos nego a verdade.



64


Tomem nota meus senhores

Isto é conselho meu

Fazer boas acções e boas obras

Nunca ninguém se arrependeu.


Editor José da Mata Júnior


Maljoga


Proença-a-Nova




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[1] O texto que nos chegou e que serviu de base para esta edição não é, possivelmente, o texto original. É uma cópia dactilografada onde a grafia apresenta já características recentes mas com algumas falhas de forma. Assim, optei por transcrevê-lo totalmente na grafia actual...


[2] Expressão popular com o sentido de “bem feito”


[3] Note-se o eufemismo – “devem fi