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sexta-feira, 15 de outubro de 2021

O TI CHICO BARBEIRO, por Carlos Amílcar Dias (publicado no Facebook da Associação da Isna de S. Carlos)

 Mestre Xico Barbeiro

Antes de começar, aqui vai uma nota prévia, por importante. Este texto é baseado numa amena cavaqueira que mantive, num verão quente em 1991, com um dos melhores conversadores que conheci. Xico Barbeiro da Maljoga (de lá).
Barbeiro é o que tem o ofício de barbear. Era assim no princípio. Mais tarde também cortava cabelos e outros misteres de que à frente se falará.
Na nossa terra a grande maioria dos homens do início do século XX só usava os serviços de barbeiro para cortar a barba. Os que tinham dinheiro por estatuto e os simples aldeões pelo facto de as suas calejadas mãos não se ajustarem a manejar com segurança uma navalha de barba e as giletes só se começaram a vulgarizar já o século XX ia adiantado.
O primeiro homem que Xico Barbeiro conheceu e que já cortava a própria barba era o importante António Tavares. Tão importante que era conhecido apenas pela respectiva profissão. Era o simplesmente importante, e não o era pouco, “professor das Cimadas”.
Os barbeiros de Proença, e também os da Sertã, e só na rua do Vale eram 6, sempre se queixavam dos barbeiros de aldeia por lhes estragarem o negócio. Na realidade, não tinham estabelecimento, não pagavam imposto industrial e trabalhavam aos sábados e domingos, além de praticarem preços mais baixos. Pudera!
Mas falemos de barbeiros e do ti Xico Barbeiro da Maljoga. Terminada a escola, 4ª classe, por volta de 1932, iniciou-se logo na arte com o seu pai e nela trabalhou mais de 60 anos.
Todas as semanas fazia a ronda pelos clientes. Malinha com a ferramenta essencial, o serviço começava na quinta-feira pelos Pisões, Rafael, Longra e Vergão. À sexta-feira ia pela Isna, Aldeia Ruiva, Cabeço e Carvalhal. No sábado fazia as Maljogas e aos domingos as Cimadas. Meio de transporte? Sempre o vi a pé.
Durante muitos anos, pelo menos até por volta dos anos de 1950, o serviço de corte de barba era pago em géneros. Habitualmente 1/2 alqueire de milho por cara, cerca de 50 barbas por ano. Já os cortes de cabelo eram pagos à parte, a 1$50, o que, daria para comprar 2 litros de vinho. A comparação é dele próprio. Na vila cada corte já custava 2$00 ou 2$50. Lembro que nos anos 1990 o salário mínimo era cerca de 175€ e um corte de cabelo custava 100$00 (0,5€).
Qualquer local servia para desempenhar a função. Xico Barbeiro passava pelas aldeias, onde atendia a clientela na rua, ou nos pátios. Qualquer degrau de escada ou muro baixo servia de cadeira para o cliente se sentar.
Às vezes recebia recado para desviar a rota e passar em determinada propriedade, pois o seu cliente estava por lá. Chegado ao local era só procurar uma sombra e um sítio jeitoso para sentar e lá vão mais dois cabelos e uma barba.
No meu tempo de miúdo não me lembro de o ver no corte de barbas. Era só cabelos. Mas a navalha, que era sempre utilizada para o retoque final das patilhas, era levemente afiada antes de cada serviço. O movimento corporal, enquanto afiava a navalha, era objecto de divertida imitação por parte dos cachopos nas suas brincadeiras.
Era bem tratado. Um copo se a adega estava perto, às vezes acompanhado de uma lasca de presunto, sobretudo se a casa era abastada. E um mestre é sempre um mestre, e como tal deve ser tratado.
Outras vezes era um bocadelho de carne gorda, daquela bem branca, a servir de lastro a um copo. Ele chamava-lhe “burel de Janeiro”.
E não confundir esta carne branca dos porcos que ao tempo se criavam na Isna, com a carne alentejana que os Mata dos Envendos trocavam por presuntos, no início quilo por quilo. Essa sim era considerada mais saborosa.
Se fosse tempo da azeitona ou das malhas calharia a vez às filhós.
Nunca levava farnel. Em tempo de fruta era uma fartura por aqueles caminhos. E o jantar, ao meio dia, era sempre em casa de determinados clientes com quem se sentava à mesa. Não fazia parte do contrato, apenas gentileza daqueles fregueses. Tinha razão para se sentir estimado, como me disse.
Mas Xico Barbeiro era especialmente um homem sempre bem-disposto. Conversador nato, era também um inesgotável contador de histórias. Como bom comunicador, falava sempre baixo. E até as prolongadas gargalhadas pareciam sob controlo, quando de uma anedota bem contada. E ele sabia bem contá-las e todas as semanas trazia novas.
Dotado de uma empatia muito grande, não parava de conversar enquanto manejava a tesoura ou a máquina, manual claro, de cortar o cabelo.
Era um autêntico cronista. E quando ouço na rádio TSF as crónicas do Fernando Alves, seu sobrinho, digo para os meus botões que tem a quem sair.
Contava quem tinha nascido, morrido, casado, chegado das Áfricas ou do Brasil. Tudo o que era novidade nas aldeias que visitava era motivo de conversa. E esta só se acabava quando terminava o serviço em mãos.
Dizia-me que se admirava de homens ricos, de terras penso eu, que colocavam o pescoço perante a navalha de um pobretana como ele.
Falou-me nos barbeiros sangradores do Pereiro e do Amioso. E também do mais famoso, que era o barbeiro das Relvas, conhecido numa área que abrangia vários concelhos. Nesse tempo, e em muitas circunstâncias, este barbeiro substituía o médico e o veterinário.
Um dia, numa feira de bois em Proença, vi uma mulher a mostrar-lhe as gretas nos calcanhares. A receita foi rápida e gratuita: - Ó mulher! Aplique unto! (carne gorda de porco sem sal). E até a Natalina pode ainda lembrar-se como foi tratada pelo barbeiro das Relvas. Natalina vê um homem apear-se do seu cavalo, vai com ela e com a mãe para a varanda da casa velha, abre a maleta, saca da navalha de barba, lancetou o furúnculo e… já está! Ena, ti Júlia! Isto é obra! Ela que conte os pormenores!
Também porco doente era tratado por barbeiros desta época por mezinhas caseiras ou até através de sangria, rasgando a orelha. Os remédios para as pessoas, medicamento é palavra recente, eram muitas vezes chás para males de barriga e papas de linhaça para inchaços. Até a extracção de dentes chegou a fazer parte do ofício daqueles barbeiros.
Aliás, a profissão de sangrador era reconhecida em Portugal desde 1604, data da publicação de um livro com o título “Prática de Barbeiros”. Desde essa data que há referências históricas às chamadas Artes de Sangradores. Em 1620 havia mesmo num hospital de Lisboa uma escola de sangria.
Por agora vou deixar-me de barbeirices. O importante é a singela homenagem que quis prestar a um mestre dos meus tempos de menino. Ti Xico Barbeiro, aliás Francisco Alves (1920-2002), é o meu mestre eleito nesta arte.