Lindo folheto1 contendo 12 poesias2 morais3, sendo a primeira, Sentimento da Criancinha; a segunda, O que é o nosso corpo humano; a terceira, Que somos além da campa; a quarta, Conselho e Vigilância; quinta, Sentimentos de ceguinhos; a sexta, A equiparação entre o incrédulo e o crente, imitando dois ceguinhos; a sétima, O Lobo e o Cordeiro; a oitava, O sol da justiça; a nona, Narrando a mentira; a décima, O que é a água; décima primeira, A criação da água; a décima segunda, O que é a morte.
1 Dizem os que conheceram o poeta que este folheto e outros eram vendidos por feiras e romarias por onde deambulava.
Na edição que aqui apresentamos, optámos por utilizar a grafia corrente. Num ou noutro caso mantivemos a grafia primitiva por nos parecer “sugestiva”.
2 Formalmente as poesias morais aqui editadas são redondilhas populares onde predominam os versos de sete sílabas métricas. Também nos aparecem versos com seis e mesmo oito sílabas. São constituídas por mote em quadra e quatro voltas (estrofes) de dez versos cada. O último verso do poema é também o último verso do mote, tal como é uso neste tipo de composições. As rimas do mote são cruzadas do tipo abab; nas voltas predominam, de forma livre, as rimas emparelhadas e interpoladas, intercalados numa ou noutra composição por versos soltos ou brancos o que revela alguma naturalidade, privilegiando o ritmo das ideias.
3 São 12 poesias morais, não mais... Doze é um número perfeito – 12 meses do ano, 12 apóstolos... Uma poesia para cada mês...
1.ª poesia
4 Optámos por inserir novamente os títulos em todas as composições para facilitar a leitura
Sentimento da Criancinha4
MOTE
Quando eu nasci chorava
Com pena de ter nascido
Parecia que adivinhava
As penas que eu tenho tido.
Quando me encontrei neste mundo
Dum grande sono despertado
Fiquei então admirado
Ao alvejar isto tudo
Confundi-me sobre tudo
Na luz que me iluminava
Não pronunciava palavra
Tudo me era confusão
Vedes aqui a razão
Quando eu nasci chorava.
O meu corpo quase imóvel
Mal movia pé e mão
Tinha o princípio da razão
Mais débil que um papel
Internado neste aduel 5 5 O mesmo que aduela – cada uma das tábuas que formam o corpo das pipas. Aqui toma-se a parte pelo todo. O corpo é comparado ao pipo.
Chorava para comigo
Que este grande mistério e perigo
Parecia que estava a adivinhar
No meio deste lupanar
Chorava de ter nascido.
Quando dei passadinhas
Primeira alegria do coração
Quando me pegava pela mão
Auxiliada 6 pelas vizinhas 6 A concordar com criancinha (cf. título)
Já dizia palavrinhas
Porque minha mãe me ensinava
E até meu pai me escoliava 7 7 É interessante o neologismo a partir de “escola”. O sentido é, pois, “até o meu pai era meu mestre-escola”.
Fazia jestruz 8 para me rir 8 Tal como está no original. Corresponde à palavra “gestos”. A prótese do “r” a seguir à consoante“t” é comum na linguagem popular.
Mas o que estava a sentir
Parecia que adivinhava.
Fui à aula pouco sei
Conheço as letras e vi as cores
Vi na primavera as flores
Nos tenros anos seguei 9 9 Sem dúvidaque, de acordo com o contexto, a palavra correcta é“ceguei”.
Na escuridão eu fiquei
Com perda do primeiro sentido
O pensamento do suicídio
Por vezes me quis sufocar
Aqui podeis avaliar
As penas que tenho tido.
2.ª poesia
O que é o nosso corpo humano
MOTE
Pus-me a pensar um dia
A sorte que tinha 10 o meu corpo 10 É uma forma popular do condicional “teria” com valor de futuro.
São trabalhos e fadigas na vida
Terra em cima depois de morto.
Quem este quadro edificou
Esta maravilha de tristeza
Foi o autor da natureza
Quem esta obra assim formou
Por certo eu também vou
Este caminho a trilhar
Ao cemitério ir findar
Onde acaba toda a vida
Nesta verdade conhecida
Pus-me um dia a pensar 11. 11 No original o verso surge “Pus-me a pensar um dia”. É falha do escrivão, pois a rima impõe a sequência que proponho.
Já cantei como actriz
Já chorei em alto pranto
Às vezes de quando em quando
Julgo que sou feliz
Lá vem um pensamento que diz
Amanhã já estás morto
Lá vem outro desgosto
Que me faz arreliar
Ainda não acabei de pensar
A sorte que tinha meu corpo.
O rico por nada faltar
O indigente com sua pobreza
Sofre o revés da tristeza
Aqui no mundo a gozar
Nós devemos meditar
O que sofreu a Virgem Maria
Jesus morto em agonia
Para o exemplo deixar
Ninguém poderá evitar
São trabalhos fadigas da vida.
12 Entrei em uma cerca fechada 12 O poeta, numa visão moralizante, reconhece o seu próprio cadáver na sepultura
Onde fiquei todo abismado
Olhei para um lado
Vi uma caveira mirrada
De pessoa tão dedicada
Que no mundo tinha conforto
Vi desfeito o seu corpo
Em pó, terra, cinza e nada
Vi a minha última morada
Terra em cima depois de morto.
3.ª poesia
Que somos além da campa
MOTE
O meu espírito se alegrou
Quando isto fui pensar
Se Deus para o Céu nos criou
Lá é que devemos ir gozar.
Levantei o meu espírito
Acima do que é terreno
Todo o homem grande e pequeno
Deve amar a Jesus Cristo
Ele não falta com isso
Prometeu e nunca faltou
Pois cristão também eu sou
Juro e não posso negar
Quando isto fui pensar
O meu espírito se alegrou.
Jesus é nosso pai
Com o sangue nos remiu
Ele para o Egipto fugiu
Em companhia de sua mãe
São José ia também
Como seu pai representar
Herodes o queria matar
Com sua ira e traição
Alegrou-se o meu coração
Quando isto fui pensar.
No mundo há tanta calamidade
Tanta gente anda a sofrer
Tanto ceguinho sem ver
Tanta viúva e orfandade
Tanto revés e contrariedade
Vejo sofrer amigo meu
Sofre amigo e sofro eu
Neste mundo de amargura
Nesta pátria não há ventura
Se Deus para o Céu nos criou.
O corpo abaixa 13 à sepultura 13 Forma popular do verbo baixar.
A alma voa para o céu
É uma pátria que Deus nos deu
Toda a fiel criatura
Com tanta alegria e doçura
Deus nos quer recompensar
Não devemos murmurar
Nas promessas do seu coração
Nesta pátria é que então
Nós devemos ir gozar.
4.ª poesia
Conselho e Vigilância
MOTE
Não deixes passar o que passa
Para nos salientar o futuro
A prática é a ciência das artes
O tempo é que traz e leva tudo.
Do teu lar faz história
Para melhor poder viver
Para depois compreender
Avivares tua memória
Depois acharás vitória
Na lida que te embaraça
Não julgues que o que se passa
Não deves estar 14 em lembrança 14 Forma popular – equivalente a ter
Põe-te sempre em vigilância
Não deixes passar o que passa.
Se teu pai morrer assenta
Se teu filho nascer escreve
Para te tornar mais leve
A um escrivão que te atenda
Não deixes perder a patenta 15 15 Patente – aqui numa forma popular de dizer.
De uma compra ou seguro
Arriscas-te a perder tudo
Ficas todo arreliado
Vive bem acautelado
Para salientares no futuro.
Até mesmo na agricultura
Não deves deixar passar
Para poderes reparar
Em qualquer sementeira ou postura
Tu artista e por ventura
Nos teus erros não pensaste
Tu nunca os emendaste
Vives sempre ignorado
Visto o que eu tenho pensado
A prática é a ciência das artes.
O antigo é o modelo
Para onde devemos dirigir
Para poderes corrigir
Qualquer erro ou empeno
O artista com o seu desempeno
O corta mão desempena tudo
Depois de nada veio tudo
Para o nada tem de voltar
Não te queiras admirar
Com o tempo traz e leva tudo.
5.ª poesia 16
16 Estamos na presença de um texto autobiográfico. O poeta compara-se ao cego de nascença para concluir que a sua situação é bem pior. Enquanto o cego de nascença canta a sua infelicidade e vive resignado, o autor, que cegou já na sua juventude (foi à escola: sabe ler e escrever), “passa a vida a chorar” as lembranças de felicidade (bem presentes na última estrofe) do tempo anterior à sua situação presente em que “vive em trevas isolado”.
Sentimentos de ceguinhos
MOTE
O cego que nasceu cego
Eu que nasci e ceguei
Diz o cego que assim nasceu
Digo eu que depois ceguei.
Passa a vida a cantar
O infeliz que assim nasceu
É uma graça que Deus lhe deu
Para se poder resignar
Da alegria um segredo
Cumpre alegre o seu degredo
Porque não viu sol nem lua
Anda apalpando na rua
O cego que nasceu cego.
Passo a vida a chorar
Do mundo o melhor perdi
Agora choro aqui
Ninguém me pode remediar
Ando sempre a contemplar
As cousas que já olhei
Na escuridão assim fiquei
Nas trevas isolado
Vivo sempre desacoroçoado
Nasci e ceguei.
No céu há tantas estrelas
E um sol que nunca vi
No seu calor me aqueci
No meio de tantas belezas
Tantas cores brancas e pretas
Nunca vi longe e nem perto
Mas tenho que dar crédito
Por que ouço assim contar
O meu remédio é cantar
Diz o cego que assim nasceu.
Já vi cabelos doirados
Na donzela mais formosa
Já vi no jardim a rosa
E a verdura nos prados
O rouxinol nos silvados
Ler e escrever também sei
E os montes passeei
Vi alvura da neve
Agora o leitor se não percebe
Digo eu que já ceguei.
6.ª poesia
A equiparação entre o incrédulo e o crente, imitando dois ceguinhos
MOTE
Quando correr esta cortina
Muitos tem 17 ignorado 17 Mantive a forma arcaica que o original apresenta. Tem aqui o valor de têm (plural).
Olhei (18) os dois ceguinhos 18 “Olhei” em vez de “olhai”. É uma forma de dizer ainda hoje comum entre as pessoas mais idosas. Nas voltas (estrofes) o imperativo já usa a forma correcta “comprai”, “educai”.
Que dão o exemplo equiparado.
Vejam bem os senhores
O que vos vou a dizer
Comprai todos para ler (19) 19 Este é um pregão sem dúvida muito utilizado pelo poeta pelas feiras e romarias por onde vendia os seus versos.
Até do lar pai e mãe
Educai os filhos bem
Do catecismo e sã doutrina
Ela declara e ensina
D’além campa a eternidade
Veremos toda a verdade
Quando correr esta cortina.
Entre o que viu e o que não viu
Houve uma discussão
Um que sim e outro que não
O que não viu se convenceu
Porque então nunca percebes
Do que andava rodeado
Agora alto dou um brado
Com esta advertência
Avivai na inteligência
O que muitos têm ignorado.
Os que tem fé dizem que há Deus
Os que não têm dizem que não
Vivemos todos num sertão
No meio de tantos segredos
Uns apontam com os dedos
Além vão os caminhos
Outros com os seus maus ensinos
Arrastam a religião
Abri os olhos à razão
Olhai para os dois ceguinhos
Entre o incrédulo e o crente
Entre o que viu e o que não viu
Tudo isto se discutiu
Que pode ler toda a gente
Que Deus Padre Omnipotente
Está um mistério encerrado
Tantos o têm negado
Como judas 20 negou Jesus 20 Judas está grafado com letra minúscula no original que manuseei em contraste com o nome de Jesus. Acentua, sem dúvida, a desconsideração popular por tal personagem. Ainda hoje na Maljoga e arredores apelidar alguém de Judas é motivo de desprezo e segregação.
Andam como cegos na luz
Que dão o exemplo equiparado.
7.ª Poesia
O Lobo e o Cordeiro
MOTE
O lobo mais o cordeiro
Encontraram-se num riacho
O lobo pôs-se por cima
E o cordeiro ficou por baixo.
Acharam-se em liberdade
O inocente e o maldoso
O pequeno é desditoso
No meio da sociedade
Eis a expressão da verdade
Não foi este o primeiro
Porque o grande é ventureiro
Que no mundo tem a potência
Acharam-se em advertência
O lobo mais o cordeiro.
Dizia a raposa certa vez
Quem 21 suas forças não tem 21 No original está “querem”. Penso ser uma gralha do escrivão
Nem no mundo pai e mãe
Perde tudo num mês
O que tanto revés
No mundo se tem encontrado
Que o pequeno é desprezado
Que não tem no mundo poder
Que para esta água beber
Muitos se encontram no riacho.
Com esta má contrição
De devoradora fera
O pequeno. O que espera?
Em trágica ocasião
Com a falsa tradição
Turvas-me água cristalina
Se eu estou por baixo e tu por cima
Como te posso eu turbar (22) 22 Dois versos acima “turvas-me”, agora “turbar”. A troca do b pelo v ainda hoje é comum.
Com as garras p’ro devorar
O lobo pôs-se por cima.
Fostes tu ou teu pai
O outro ano passado
Eu tenho seis meses contados
Deste ano que lá vai
De profundo deu um ai
Ai que estou devorado
Olhou para o seu lado
Ninguém o pode defender
Deitou os dentes e foi comer
O cordeiro ficou por baixo.
8.ª poesia
O sol da justiça
MOTE
Quando romper o lindo Sol
Que a justiça aqueceu
Bem ditoso foi aquele
Que no seu calor adormeceu.
É o 23 grande e não o pequenino 23 Este “o” equivale à contracção “ao”. Aparece mais uma vez neste verso
Que a justiça dá poder
Que a fazem proceder
Como o lobo ao cordeirinho
O hipócrita com o dinheirinho
É que no mundo tem valor
O envalido 24 e o menor 24 inválido
Não tem no mundo poder
Mas isto se há-de esclarecer
Quando romper o lindo Sol.
Vejam bem ó meus senhores
Da justiça a gravidade
Quando lhe faltar a verdade
Dos carvões fazem flores
No tribunal trocam-se cores
Que pela honra se jurou
Em justa a causa se deu
Porque lhe faltou o melhor
Veio a nuvem encobrir o Sol
Que a justiça aqueceu.
A verdade é um tesouro
Que tudo quer enriquecer
Tenho esta para dizer
No presente ao vindouro
Até na balança o ouro
A verdade é o modelo
Que faz grande o que é pequeno
Como criatura verdadeira
Quem defendeu esta bandeira
Bem ditoso foi aquele.
A verdade é como o azeite
Por cima de tudo há-de brilhar
Ainda que a queiram sufocar
Ela por cima há-de dar jeito
O seu progresso é perfeito
Quem com ela procedeu
O seu nome engrandeceu
De honrado e verdadeiro
Foi no mundo um cavalheiro
Que no seu calor adormeceu.
9.ª Poesia
Narrando a mentira
MOTE
O autor da mentira
Julga às vezes que é feliz
O resultado que dela tira
É desacreditar quem não diz.
Em qualquer algum negócio
A mentira é protecção
Aquele que tem a intenção
De enganar o seu próximo
Até na vida dos consórcios
Alcoviteira com a mentira
Desordena aquela vida
Por causa do ciúme
Quem usa este costume
É o autor da mentira.
Fica todo satisfeito
Em resolver o problema
Depois de corrida esta cena
O que o negócio também feito
Se não soubesse dar o jeito
Ele de si para si diz
Quem não tem manha é infeliz
E no mundo desprezado
Com a mentira ao seu lado
Julga às vezes que é feliz.
Quem mente cospe no ar
Para no rosto vir bater
Ainda que se queira esconder
Ela o há-de fazer corar
Nunca se há-de fartar
Nem encher a sua barriga
Há-de viver na mesma lida
Como vive o caloteiro
Para pagar nunca tem dinheiro
É o resultado que dela tira.
É hipócrita vigarista
Troca tintas verdadeiro
É falso e traiçoeiro
É a nobreza que conquista
A verdade põe à vista
Tudo declara e tudo diz
Até no tribunal o juiz
A mentira descobriu
O resultado que nela se viu
Foi desacreditar quem a diz.
10.ª poesia
A criação da água
MOTE
A água foi destinada
Para nunca sossegar
Ou nas nuvens ou na terra
Ou no rio ou no mar.
Água é um alimento
Sem ela não se pode passar
Para beber e derregar
A vegetação em todo o tempo
É tocada pelo vento
Nunca pode estar parada
Quer no rio quer na tirada (25) 25 Cada uma das leiras por onde corria a água na rega do milho.
Tem sempre de correr
Para volver e devolver
A água foi destinada.
É conduzida a um moinho
Para um rodízio tocar
Para moer centeio e milho (26) 26 Eram os cereais mais comuns cultivados na Maljoga. O centeio, em terrenos magros, nas encostas ou altos voltados ao sol, o milho nas terras ao pé da ribeira (da Isna) – As terras de regadio da Várzea da Ribeira, da Forga da Boa, da Fraga, da Fosseirina, da Milheirada e do Gamoal constituíam autênticos celeiros que alimentaram até finais da década de sessenta do século passado a população da Maljoga
A padeira o pãozinho
Com ela o vai amassar
O calor a faz voar
Quando está a cozer
Foi destinada para devolver
E nunca poder sossegar.
Não se perde uma gota
Ainda que a venham beber
Numa panela a ferver
Há-de sair pela boca
Ela vai de pouco a pouco
Conduzida à atmosfera
Depois o chão a espera
Para a sede saciar
Lá tem ela de voltar
Das nuvens para a terra.
Imita a respiração
Do nosso corpo humano
Naquele grande oceano
Está a contemplação
Quando é em ocasião
Da maré ir vazar
Lá torna ela a voltar
Em onda em campolada (27) 27 “em campolada” (encapelada).
Anda sempre agitada
Quer no rio quer no mar.
11.ª Poesia
A criação da água
MOTE
Segundo o meu modo de ver
A água também se cria
É a terra que a consome
E ela mesmo é que cria
Segundo o meu uso da razão
A água também mingua
Quer em casa quer na rua
Ela tem muita extracção
A conta de subtracção
Em tudo tem que haver
No comer e no beber
A água tem de assistir
Ela tem de subtrair
Segundo o meu modo de ver.
Em máquinas e motores
Em comboios a fugir
Ela move e faz seguir
Até nos mares os vapores
As plantas e as flores
Ela alenta e segura a vida
Quando se vê oprimida
Ela move e faz girar
Segundo o meu modo de pensar
A água também se cria.
A terra é uma fábrica
De grande destilação
Até debaixo do chão
Estila 28 água salgada 28 Note-se aférese (queda inicial) do “d” – (d)estila
A imundície numa palavra
Tudo extrai e tudo come
Até o animal e o homem
Tudo ela quer liquidar
Se alguma gota faltar
É a terra que a consome.
Mas ela quer restituir
Por plantas que dão vinho
Óleo e azeitinho
E mais frutas a seguir
O calor a faz extrair
Em gotas de água cristalina
Da nuvem à ribeirinha
Lá ela tem de voltar
Não quero mais duvidar
Que a mesma terra é que cria.
12.ª Poesia
O que é a morte
MOTE
A morte tem tantos laços
Tantos laços que ela tem
Mais que lhe ponham embaraços
A ela não escapa ninguém.
Todo o ente que nascer
Tem a morte por herança
Ou em velho ou em criança
Todos temos de morrer
Até antes de rescemnascer (29) 29 (sic) Mais uma nota da dificuldade em grafar palavras de uso mais restricto: “rescemnascer” – a epêntese (acrescento) do “s” re(s)cem. O verbo feito a partir de recém-nascido é curioso. Nós diríamos “Até antes de nascer”, sem fixar um momento. A ideia formulada pelo neologismo “recemnascer” parece referir-se à situação (infelizmente muito comum naquelas terras) do nado morto.
Tem-se dado estes casos
Temos a vida em vasos
De vidro bem frágil
Para tudo se cumbir (30) 30 O poeta popular conhece a palavra “sucumbir”, mas é cego e o seu escrivão, não a conhecendo, grafa-a erradamente..
A morte tem tantos laços.
Tudo o que nasceu herdou a morte
Ela nos traz a igualdade
Em qualquer outra idade
Somos herdeiros deste dote
Herda o fraco e o forte
O mesquinho e o potente
Até Deus Pai e Omnipotente
Ele a morte quis herdar (31) 31 Dizem-me pessoas que o conheceram que o ti Zé (nome familiar com que ainda hoje é lembrado) da Mata era catequista. Daí a referência à teologia da morte de Deus na Cruz, na pessoa do seu filho Jesus
Para tudo capturar
Tantos laços que ela tem.
Até o doutor de medicina
A ela não há-de escapar
Mais que faça para estudar
Para dar vida à criancinha
Ao mancebo e à velhinha
Faz operações e autópsias
No meio destas hipóteses
Toda a gente quer viver
Mas há-de sempre vencer
Mais que lhe ponham embaraços.
Ó morte és tão poderosa
Matas o Rei e a rainha
Matas a mãe e a criancinha
E ao general a sua esposa
Matas donzelas mais 32 formosas 32 “mas” no original que temos estado seguir... Pensamos ser um lapso tipográfico.
Em ti tudo te está bem
Roubas o filhinho à mãe
Não temos ouro nem dinheiro
Matas o nobre e o guerreiro
A ela não escapa ninguém.
Desculpem todos ó meus Senhores
Se eu nalgum verso errei
É obra de um ceguinho
Mais que isto não sei.
Foi editor José da Mata
Do lugar da Maljoga
Da comarca da Sertã
Concelho de Proença-a-Nova
Maljoga, 27 de Junho de 1934.