1.ª PARTE
Adeus aldeia da Várzea
Qual foram os teus destinos
De hoje para o futuro
És terra de assassinos.
2
Com a dor no coração
Escrevi neste papel
Até hoje nunca se viu
Barbaridade tão cruel.
3
Foi no dia cinco de Fevereiro
Que este caso aconteceu
Pelas quatro horas da manhã
João António faleceu.
4
Foram quatro vadios
Consciências desvairadas
Tirá-lo da sua cama
Para lhe dar sete facadas.
5
Os bárbaros sem consciência
Sem temor e sem contrição
Deram-lhe uma no lado direito
Que lhe atravessou o coração.
6
Foram chamar seu irmão
Que tal coisa não sabia
Quando ao pé dele chegou
Desmaiado no chão caiu.
7
Quando o povo se ajuntou
Causava dó e compaixão
Gritavam em altas vozes
Sejam encerrados na prisão.
8
Foram chamar o regedor
Os cabos também vieram
Ficaram todos atónitos
Por fim nada fizeram.
9
O regedor não teve esperteza
Isto se pode destinguir
Andaram ali acassapados
Depois deixaram-nos fugir.
10
Veio a justiça da Sertã
Causava terror e confusão
Quando encontraram o cadáver
De bruços no meio do chão.
11
Instou o senhor doutor médico
Não foi escasso em dizer
Abram caminho para o lado
Cheguem todos e venham ver.
12
Ó pais e mães de família
Vinde todos observar
Esta cena tão horrorosa
Nela exemplo tomar
13
Não se viam se não lágrimas
Lamentações e suspiros
Choravam em altas vozes
Amigos parentes e vizinhos
14
O seu irmão José Nunes
Com o coração cheio de mágoa
Apanhou o sangue todo
Com os olhos banhados em água.
15
Foi levá-lo ao cemitério Santo
Onde jazem corpos mortais
Repouso de profunda tristeza
De nossos avós e pais.
16
Levaram o cadáver para a Sertã
Para terra de mais respeito
Só no dia seis à tarde
Foi a autópsia feita.
17
Deviam tirar-lhes o coração
Para nele tomar experiência
Para depois o apresentarem
No dia da audiência.
18
Tomem nota meus senhores
Por cima da pedra dura
Dois já estão na prisão
João António na sepultura.
SEGUNDA PARTE
NOMEAÇÃO DOS ASSASSINOS
19
Eis aqui meus senhores
Uma história de pasmar
Tem o coração muito duro
Quem não se largar a chorar.
20
Carlos Brízio traiçoeiro
Que sua faca afiou
Que havia de dar sete facadas
Por certo assim calhou.
21
Foi Adelino Morgado
Com a sua má contrição
Pegou logo na faca
Cravou-a no coração.
22
Segundou-a sete vezes
Causa dó e muito respeito
Por ser bárbaro e carrasco
Com uma mão ficou satisfeito.
23
O seu irmão João Morgado
Era da mesma secção
O povo encontrou este delito
E não lhe deitaram a mão.
24
Também o Manuel Martins
Por ser filho de homem honrado
Deitamo-lo para aquele poço
Aperda [2] que o leve o diabo.
25
Vejam aqui uma expressão
De homem de tanto valor
Só ele tinha presunção
De ser mordomo do Senhor.
26
Eram quatro desordeiros
De noite faziam chinfrim
Assim mataram aquele rapaz
Sem o povo dar motim.
27
Quando estava em agonia
De profundo deu um ai
Deixem-me, vou pagar o vinho
Ai Jesus... ó meu pai!
28
Ouviu José Francisco
Ele os quis repreender
Saltaram enraivecidos
O telhado lhe foram moer.
29
Bateram à parta da Carraça
Naquele mesmo momento
Ó Maria abre-nos a porta,
Demora-nos pouco tempo.
30
Ela estava na cama
Tratou de se vestir
Desceu a escada abaixo
Para a porta lhes abrir.
31
Entraram para dentro
Alegres do coração
Aquele já está seguro
Falta-nos agora o seu irmão.
32
Talvez o alma de tantos
Ainda queira escapar
Vou-lhe dar outra facada
Que ele por força há-de ficar.
33
Ó corações enraivecidos
Depois de o rapaz estar morto
Pegam outra vez na faca
Vão-lha espetar no corpo.
34
Vós ficastes regalados
De cortar em carne humana
O diabo vou tentou
Que a muitos engana
35
Prometestes-lhe um vestido
Para ela vos não declarar
Mas há-de ser a melhor testemunha
Que vos há-de acusar.
36
Prometestes-lhe muitas prendas
Isso não presta para nada
Se ela não confessar a verdade
Merece ser degradada.
37
Seguistes a lei da natureza
Ao vício e à vaidade
Para regalar o coração
Perderam a liberdade.
38
Por aquilo já se esperava
Na aldeia não havia paz
No João António ninguém falava
Porque era muito bom rapaz.
39
Depois de se pôr o Sol
Ninguém lá podia passar
Fosse quem quer que fosse
Davam-lhe logo a rachar.
40
Também ao Manuel Isidro
Quiseram tirar a buchada
Valeram-lhe as sapatilhas
Ainda apanhou uma pancada.
41
Faziam rondas de noite
Ninguém deixavam sossegar
Já não faziam caso deles
Era gritar sobre gritar.
42
Tomem nota meus senhores
Notem e queiram notar
Estes devem ficar livres
De o Sol os queimar [3].
TERCEIRA PARTE
LAMENTAÇÃO DOS PRISIONEIROS
43
Vê aqui ó Manuel Martins
Também os teus companheiros
Podiam ser bons cidadãos
E por fim são prisioneiros.
44
Vedes aqui o que causou
A vossa má inclinação
Agora por fim o que vos resta
É viver na solidão.
45
Sirva a todos de exemplo
Que não deve ficar cobiça
Devemos ter dó deles
Mas deve cumprir-se a justiça.
46
Ex.mo Juiz de Direito
Ouvi-me esta palavra:
Fazei justiça recta
Um homem não é uma cabra.
47
Se não houver algum temor
E da Justiça algum respeito
Se não tivermos disciplina
Matar-se-á tudo a eito.
48
Não quiseram contradizer
Suas paixões desvairadas
Homens sem freio nas acções
São como feras desesperadas.
49
A vossa gente anda de luto
Sofrer sobre sofrer
Antes de fazer tal delito
Mais vos valia morrer.
50
Pelo menos sentia-se a perda
De homens de pouco valor
Assim sempre ficam sendo
Da geração dos matadores.
51
Vós tendes muitos bens
Não os soubestes lograr
Para serem homens modelo
Não vos quisestes incomodar.
52
O que muito incomoda
Para quem é ilustrado
Fazer serviços e más acções
Para viver envergonhado.
53
No seio do lar doméstico
Vos podíeis cultivar
Pretender uma donzela
Para vosso filho educar.
54
Para este bem tão comum
São palavras evidentes
Assassinos e matadores
Não devem ter descendentes.
55
Perdeste o direito
Aos negócios sociais
Não estareis envergonhados
De desonrar vossos pais?
56
Quando ias ao adro
Apertar a mão às donzelas
Beber o vinho com os amigos
Ai Jesus... Cousas tão belas.
57
Perdestes o direito ao recreio
Da Primavera das flores
Ouvir cantar os passarinhos
Trinando hinos e louvores.
58
Ó, que recreios tão lindos
Se ama e louva ao Senhor
No vosso coração já não entrava
Nenhum raio do seu amor.
59
Pelo silêncio da noite
O Céu semeado de estrelinhas
Quando vós andáveis na rua
Fazendo asneirinhas.
60
Perdestes o direito ao Sol
Que ilumina todo o mundo
Agora por fim é jazer
Nesse abismo tão profundo.
61
Quem pudera escrever
Bem a fundo a vossa vida
Faltou-me a capacidade
E os estudos de Coimbra.
62
Sou do concelho de Proença-a-Nova
Na Maljoga residente
Sou um infeliz
Com pouco entendimento.
63
Queiram-me todos desculpar
A minha incapacidade
O meu nome é José da mata
Não vos nego a verdade.
64
Tomem nota meus senhores
Isto é conselho meu
Fazer boas acções e boas obras
Nunca ninguém se arrependeu.
Editor José da Mata Júnior
Maljoga
Proença-a-Nova
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[1] O texto que nos chegou e que serviu de base para esta edição não é, possivelmente, o texto original. É uma cópia dactilografada onde a grafia apresenta já características recentes mas com algumas falhas de forma. Assim, optei por transcrevê-lo totalmente na grafia actual...
[2] Expressão popular com o sentido de “bem feito”
[3] Note-se o eufemismo – “devem fi
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